quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Eu sou muito tonta

Ontem eu fiz uma coisa que não fazia há muito tempo, nem lembro quanto. Passei a tarde inteira num shopping, andando e olhando as vitrines. Um shopping muito chique, bonito e com coisas caras. Mais caras do que as mesmas coisas em outros shoppings. Mas eu não fui fazer compras, fui trabalhar. É, tô fazendo uma revista.
Foi um pouco sofrido olhar tantas coisas bonitas e não comprar nada. Lembro de um tempo atrás, quando eu não resistia a uma vitrine e pensava: "Ah, vou só ver e experimentar, não custa nada...". E acabava saindo da loja com várias sacolas cheias e a carteira vazia. Lembro também do professor de um curso que eu fiz, sobre marketing, que só se vestia de preto e com roupas sem marcas. Na verdade, ele era muito elegante e estiloso, devia usar roupas caras, mas dizia que por ter trabalhado tanto tempo vendendo produtos, tinha aprendido a não se render à propaganda. Contou até uma história sobre a ocasião em que presenciou uma criança chorando na fila do supermercado por querer um tipo de queijo só por causa da embalagem que tinha mudado e ficado mais bonita (e que ele havia desenhado), enquanto a mãe falava: "Mas você não gosta disso!". E ele ficou com peso na consciência.
Sorte minha que, depois de terminar a Viagem do Elefante, meti na bolsa o primeiro L&PM que achei na prateleira: Sêneca, Aprendendo a Viver. E ele me disse: "A comida deve acalmar a fome, o beber, a sede, as roupas devem proteger do frio, a casa, ser abrigo contra o mau tempo. Não importa se foi construída com taipa ou com mármore importado: saiba que um teto de palha abriga um homem tão bem quanto o de ouro. Despreza tudo o que um trabalho supérfluo estabelece como enfeite e requinte; pensa que nada é extraordinário a não ser a alma e que, para uma alma grande, nada é grande".
E vi que
, por volta das 16h, aquele shopping se enche de senhoras muito bem arrumadas e maquiadas, que se reunem para tomar o café da tarde, em cafeterias refinadas. Enquanto isso, nos bancos lá fora, duas amigas de uns 20 anos, também maquiadas e com roupas da moda, conversam, uma morena e uma loirinha com uma sacola de uma loja cara no colo. A morena diz: "Vamos até a Paulista comigo, é só pegar o metrô aqui do lado". E a outra responde: "Mas eu só tenho dinheiro pra voltar pra casa. Dois e quarenta pro metrô e dois e sessenta do ônibus". E, do outro lado das trinta e duas palmeiras enfeitadas com luzinhas de Natal, uma senhora senta ao lado de uma moça com uniforme de uma loja de óculos, que escuta música com fones de ouvido, e diz: "Moça, se eu fosse você chegava mais pra lá porque eu vou fumar". E ela diz: "Não tem problema". Aí, a velha começa a falar do feriado da próxima quinta e a moça desata a falar coisas como: "É uma droga esse feriado, eu vou trabalhar de qualquer jeito, das 10 às 10 e a única coisa que ganho a mais é 20 reais, pelo menos dá pro lanche, se bem que esse shopping é tão caro que nem pro lanche dá, e eles nem dão vale alimentação. Esses negros são preconceituosos contra eles mesmos, porque não tem dia da consciência branca? Se alguém me chama de branquela, pra quem eu vou reclamar? Foi a Marta que fez esse feriado pra ganhar voto, mas não adianta nada. Eu só trabalho nesse shopping pra pagar a faculdade, porque sou sozinha aqui em São Paulo. Mas esse é o último ano. Não suporto esses judeus mal educados que não olham nem pro lado e tratam a gente com grosseria. Na loja que eu trabalho todo mundo tem que ter tatuagem, piercing, por causa do estilo da marca, né? Mas aqui a gente não pode mostrar nada porque os judeus olham feio. E sábado então, que eles nem pegam em dinheiro! Mas eu tô em horário de almoço, deixa eu voltar pra loja. Passa lá depois pra comprar um óculos comigo". Ah, e teve também a gerente de uma loja suuuper chique de decoração que chamou a funcionária lá fora pra conversar: "A gente vai te efetivar, eu preenchi esse formulário com a sua avaliação. Coloquei excelente em tudo, menos em produtividade e interesse, porque você é nova e acho que pode fuçar mais no sistema pra aprender. Agora você assina e a gente manda pra eles. Você tá gostando? Vai querer ficar mesmo? Ótimo. Esse papel já tava aqui comigo há um tempão pra preencher e mandar, sabe? Mas é que nunca dá tempo. Assina aí e a gente manda logo." E a moça "Ficou bonita a decoração de Natal que a loja fez, né?". E a gerente: "É, vamos?".
Depois, a noite, fui assistir Uma pilha de pratos na cozinha, texto do Bortolotto, no Satyros 1. Enquanto esperava minha amiga Priscila tomando um café no bar do Parlapatões, vi passar um homem maltrapilho, provavelmente um morador de rua, que, por cima das roupas velhas e sujas, usava um chambre (que palavrinha!) com losangos azuis e vermelhos, limpo, quase brilhante, que chegava a dar um ar elegante a ele. E me fez sorrir.
Assisti o espetáculo, senti o estômago contraído e gelado nos minutos finais e vi gente chorando. Quando saí só senti vontade de falar uma coisa: "Vai se foder!". Por que você acha que tem o direito de jogar essas cosias assim na nossa cara? E por que você faz isso tão bem? E sem rodeios, sem vergonha, sem nem disfarçar...
Saí e lembrei de novo do que tinha lido de manhã: "Discordo daqueles que se jogam no meio das ondas e que, atraídos por uma vida tumultuosa, lutam, cotidianamente, com grande ânimo, contra as dificuldades das coisas. O sábio o suporta, não o escolhe, prefere a paz à luta; não é muito útil abandonar-se aos próprios vícios se é preciso lutar contra os alheios. (...) Alguns se vangloriam dos seus vícios; e tu pensas que busca remédio quem enumera os seus vícios como se fossem virtudes?"
E cheguei em casa antes da meia-noite, pensando e rindo sozinha...

2 comentários:

Unknown disse...

What a day!
depois de Pinhas, me emociono de novo com este texto.
Obrigada!
Acho que não quero ser sábia então, viu... rs
beijos,

Anônimo disse...

Como dizia GUIMARÃES ROSA :
" Eu não sei de NADA , mas DESCONFIO de MUITA COISA .... " Adorei mais essa reflexão .
É sempre gostoso passar por aqui ! BJS !