quinta-feira, 11 de junho de 2009

Ainda hoje

"Ele sabia que o amor doia ao princípio, tinha medo de quando deixasse de doer e ficasse igual a outra coisa qualquer. Por isso, disse-lhe logo à partida, não acreditava naquele amor que aparece pronto, arco-íris inesperado no fim de uma curva qualquer. 'O amor contrói-se', dizia ele, eficiente artista plástico. ' O encantamento vem da construção.' Ela tinha vontade de lhe dizer que é precisamente ao contrário, dessa insônia iluminada da alma a que se chama inspiração é que nasce a ideia, e depois a construção."

"Às vezes a rebelião consiste em deixarmo-nos ir com a maré, prescindindo da raiva, da luta, da tristeza, da alegria. O desprendimento, creio que essa é a grande revolução, o segredo futuro da intimidade que ainda mal tacteamos e que foi a secreta epopeia do século XX."

"'Todas as paixões são histórias de mortos, suicídios metafóricos', dizes-me tu, tantas vezes. 'Devíamos aproveitá-las como cursos de preparação para a morte, aulas de desprendimento'. Mas em cada abandono, em cada desilusão, em vez de desprendimento aprendemos o cinismo. Os namorados antigos aparecem para nos dizer, num ronco de motoenferrujada: 'Tornaste-te amarga, não eras assim. Tu não eras assim.' Antes nos dissessem, com clareza: 'Envelheces-te.' Para onde vão os primeiros beijos, os filhos sonhados pelos namorados efêmeros, o amor demasiado aflito para viver? Para o armazém das almas, lugar inútil que nos protege da utilidade da vida. Protege-nos dos seres reciclados que labutam na 'construção' de 'relações adultas' forjadas por 'interesses comuns', visando a 'estabilidade' e o 'progresso'. Quando são capazes de, sem que a mão lhes trema, isolar a paixão (tida por violenta e, portanto, passageira) do amor (tido por pacato e de confiança) as pessoas sentem-se criaturas maduras."

Carta a uma amiga, Inês Pedrosa

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